Imagine-se um motorista de um imponente caminhão que pega uma grande e movimentada rodovia e começa a dirigir na contramão. Indagado por sua conduta, responde sorridente: estou dirigindo como os ingleses! Pode ser que alguns juízes brasileiros, sem se darem conta, pensem que estão decidindo como seus pares na Inglaterra. Isso não é verdade, ainda que uma grande mudança na formação da decisão judicial esteja acontecendo entre nós.
A Constituição Federal determina que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, bem como estipula que os tributos só podem ser criados ou modificados por lei. Todavia, em matéria tributária, os juízes têm, cada vez com maior frequência, decidido de forma diferente do que a sociedade encontra na legislação, criando até mesmo obrigações tributárias não aprovadas pelo Congresso.
Os exemplos se avolumam: responsabilidade tributária não prevista em lei, suspensão da prescrição sem completa base legal, incidência dupla do IPI Importação. Os juízes estão passando a ser a nova fonte do direito tributário, suplantando a Constituição e o Legislativo.
Os juízes aqui podem estar tentando melhorar a arrecadação, reduzir a sonegação ou simplesmente refletindo seus desejos pessoais
Por que agem assim? Como os magistrados só decidem se provocados, e quem não concorda pode recorrer, na verdade eles estão sendo atraídos a tomar novos caminhos pelos advogados do Fisco. Estes não estão buscando o Congresso e pedindo mudanças nas leis tributárias, ou à Presidência da República e conseguindo alterações via medida provisória. Eles estão buscando os gabinetes de tribunais, principalmente nas Cortes superiores, e conseguindo decisões que lhes sejam mais favoráveis, ainda que contrariem as leis, com muito mais facilidade.
Isso porque existem três possibilidades de mudança nas regras tributárias que atingem todo o país: pelo Congresso, pelo presidente da República e pelos juízes. Ainda que haja imperfeições em todas essas vias, a mais democrática é a legislativa, cujos trâmites podem ser acompanhados por todos, principalmente pela mídia, em diversas fases.
Assim, as mudanças da legislação, feitas desde a origem no Congresso, começam com a proposta apresentada por algum parlamentar, tramitam por comissões legislativas e precisam ser aprovadas em plenário. Quando o assunto em discussão é uma lei nacional, seu quórum é mais difícil de ser alcançado, como as mudanças que atingem o Código Tributário Nacional (CTN). Os projetos de lei podem ser acompanhados pela sociedade em todas essas etapas, não sendo raro que tais discussões passem a ser públicas e publicadas pela mídia.
As mudanças por medidas provisórias nascem nos gabinetes palacianos e, aprovadas pelo presidente, passam a valer desde a publicação, mas têm que ser aprovadas pelos parlamentares, inclusive nas comissões já mencionadas. Aqui não há controle social prévio, mas há depois, durante os trâmites da MP no Congresso. Já as mudanças legais via Poder Judiciário não são nada republicanas e nem transparentes. Não estão sujeitas aos trâmites dentro do Executivo e nem do Legislativo, não se submetendo ao crivo da Mídia ou da população em nenhuma de suas etapas, pois elas nascem de petições dos advogados e terminam com a decisão dos juízes.
Para exemplificar, com o Recurso Extraordinário n. 1.120.295/SP o egrégio Superior Tribunal de Justiça pôs abaixo o artigo 174 do CTN, que trata da prescrição do crédito tributário, mediante o voto de oito ministros. A mesma mudança, via Congresso, demandaria a aprovação da maioria absoluta dos parlamentares, ou seja, ao menos 257 deputados e 41 senadores! As mudanças das regras tributárias pelo Judiciário, assim, ficam mais fáceis e mais silenciosas do que as demais.
Com as alterações no direito feitas por juízes, aproximamo-nos do common law? Na verdade, não. Na Inglaterra, as sentenças são baseadas nos princípios gerais de direito e os julgadores aplicam os precedentes que foram sendo construídos nos últimos séculos, em um modelo aceito desde sempre pelos parlamentares. A regra é o juiz aplicar a decisão dos que o antecederam, conferindo segurança jurídica aos jurisdicionados. E quando as sentenças do passado não refletem mais o desejo da sociedade ou mesmo do Poder Judiciário? Eles entendem que cabe ao Parlamento estabelecer o novo direito. Em matéria tributária, a decisão cabe ao Legislativo desde a Magna Carta (“não tributação sem representação”), repetida na Constituição dos EUA. Então, nem na Inglaterra os magistrados estão autorizados a criar regras tributárias. No Brasil é igual, com o princípio da legalidade.
Os juízes aqui podem estar tentando melhorar a arrecadação, reduzir a sonegação, facilitar para o Fisco ou simplesmente refletindo seus desejos pessoais. Não percebem que suas decisões aumentam a insegurança jurídica, levam à redução da atividade econômica, afugentam investidores estrangeiros e ampliam a desconfiança da sociedade no Judiciário.
Desejamos que nossos pares voltem a depositar no Legislativo a autoridade para estabelecer as regras tributárias, permitindo o aumento da confiança nos juízes e no direito, ainda que contrariem os interesses dos procuradores fazendários. Afinal, juízes não são eleitos e na nossa ordem constitucional vige o princípio da legalidade, não o da jurisprudencialidade.
Renato Lopes Becho é professor de direito tributário na graduação, especialização, mestrado e doutorado da PUC-SP, livre-docente pela USP, pesquisador visitante no King’s College, Londres. Juiz federal e coordenador do Fórum de Execuções Fiscais de São Paulo/SP
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Por Renato Lopes Becho
Fonte : Valor
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