Categoria PUBLICAÇÕES

zehuritovar porzehuritovar

Receita pratica discriminação tributária contra refinarias privadas

O artigo 23 da Lei 10.865/2004 faculta ao importador e ao fabricante de gasolina (salvo de aviação) e suas correntes[1] e de óleo diesel e suas correntes, entre outros produtos, optarem por regime especial de apuração do PIS e da Cofins. Consiste tal regime na atribuição de valores fixos às contribuições, por metro cúbico de produto importado ou vendido.

Embora a lei não seja expressa quanto ao creditamento pelas despesas necessárias à industrialização dos mesmos produtos no mercado interno, fato é que o segmento não está excluído da não cumulatividade pelos artigos 8º da Lei 10.637/2002 e 10 da Lei 10.833/2003, sendo ainda de notar que o artigo 3º de ambas as leis não faz nenhuma restrição à tomada de tais créditos.

Deveras, a única vedação relevante para o setor imposta por esse artigo refere-se aos créditos pela aquisição no mercado interno, para revenda, dos derivados de petróleo em questão — o que decorre da menção, na alínea b do inciso I do artigo 3º, ao parágrafo 1º do artigo 2º de ambos os diplomas (ver especialmente os incisos I, VI e X do referido parágrafo 1º)[2].

Apesar disso, a Receita Federal tem autuado os optantes que tomam créditos pelas despesas necessárias à fabricação daqueles produtos (insumos, energia elétrica, armazenagem etc.), ao suposto de que o regime especial afasta a não cumulatividade, exceção feita apenas ao creditamento pela importação das mercadorias nele contempladas, visto ser essa a única hipótese referida de maneira explícita na lei.

Nada mais errôneo. Primeiro, porque a interpretação a contrario sensu dos artigos 8º e 17, inciso II, da Lei 10.865/2004 é forçada: tudo o que eles dizem é que o importador terá créditos para compensar no âmbito do regime especial, em nenhum momento afirmando que este é o único caso de creditamento ou vedando tal possibilidade em outras situações.

Segundo, porque o Fisco parte da premissa errada: se o contribuinte está sujeito ao PIS e à Cofins não cumulativos, o que se deve buscar são regras que vedem o creditamento, e não que o permitam de forma expressa, pois a presunção milita em favor deste. E tal proibição não existe para as despesas em exame, como já se referiu.

Terceiro porque a assimilação do regime especial a um caso de cumulatividade é incompatível com a Lei 10.865/2004, que admite de forma textual o crédito do importador. Cumulatividade com direito de crédito é um contrassenso.

E quarto porque a interpretação adotada pela Receita — sem nenhum fundamento legal, insista-se — contraria princípios constitucionais da maior envergadura, tais como a soberania nacional, a livre concorrência, a neutralidade da tributação, valor subjacente à não cumulatividade e a isonomia.

Basta ver o seguinte: o importador de gasolina que a revende no mercado interno sujeita-se a R$ 261,60 de PIS/Cofins na importação (R$ 46,58 de PIS + R$ 215,02 de Cofins)[3] e a outros R$ 261,60 de PIS/Cofins na revenda. Contudo, deduz o primeiro valor contra o segundo — nos termos do artigo 17, inciso II, da Lei 10.865/2004 —, de sorte que nada paga na segunda operação, submetendo-se a uma carga tributária final de R$ 261,60.

Já a refinaria deve os mesmos R$ 261,60 na venda e, no entender do Fisco, nada pode abater quanto ao PIS e à Cofins suportados na aquisição dos bens e serviços necessários à fabricação da gasolina — despesas que só ela tem, pois o importador já recebe o combustível pronto.

Caso possa compensar tais créditos, terá carga tributária final idêntica à do importador (R$ 261,60), visto que o valor descontado quando do recolhimento já foi suportado no momento das aquisições. Não podendo aproveitá-los, terá carga tributária final equivalente à soma entre os R$ 261,60 devidos na saída e todo o PIS/Cofins incidente sobre as despesas essenciais à sua atividade, numa exótica forma de protecionismo às avessas, em que o país dá tratamento fiscal mais vantajoso aos produtos importados do que aos fabricados localmente.

Se é certo que os tratados firmados pelo Brasil o impedem de conceder privilégios tributários aos produtos domésticos em detrimento dos importados[4], é também evidente que ofende a soberania nacional — a que a ordem econômica deve sujeição, como lembra o artigo 170, inciso I, da Carta — o comportamento contrário, de discriminar fiscalmente os agentes internos em favor dos estrangeiros.

Ademais, a interpretação da Receita gera grave ofensa à livre concorrência (Constituição, artigo 170, inciso IV), favorecendo as 13 refinarias do sistema Petrobras, que em 2015 responderam por 98,2% da capacidade total instalada, frente às quatro controladas pelo setor privado, detentoras de não mais do que 1,8% do parque nacional de refino[5].

Com efeito, as refinarias da Petrobras foram constituídas sob a forma de filiais, de maneira que recebem os principais insumos para a produção de derivados sob a forma de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, sem incidência de PIS/Cofins. Sujeitam-se às contribuições somente nas importações, mas aí a lei lhes garante o crédito.

Já as refinarias privadas, não atuando na extração, precisam comprar os insumos no mercado interno ou no exterior, mas — na esdrúxula concepção da Receita — só têm créditos na segunda hipótese. O resultado dessa interpretação enviesada é a maior oneração tributária dos produtos das refinarias privadas frente aos vendidos pelas refinarias da Petrobras, sendo certo que ambas exercem exatamente a mesma atividade.

É claro que isso não se compatibiliza com a Constituição, que ademais veda a concessão — pela lei ou por quem tenha a função de interpretá-la em nome do Estado — de privilégios fiscais a empresas públicas ou sociedades de economia mista (artigo 173, parágrafo 2º).

Ofensa há ainda à não cumulatividade (artigo 195, parágrafo 12), na sua dimensão funcional — negativa de créditos quanto a despesas efetivas, essenciais e tributadas — e também no seu fundamento último, que é garantir a neutralidade fiscal, qualquer que seja o grau de verticalização dos agentes econômicos[6].

O valor subjacente a todos esses princípios constitucionais é a isonomia, cláusula pétrea cuja faceta tributária vem consagrada no artigo 150, inciso II, da Constituição (vedação de “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”).

A solução desse grave equívoco hermenêutico não requer a declaração de inconstitucionalidade de nenhuma lei — pois não há comando que sustente a visão da Receita —, exigindo apenas uma leitura sistemática e alinhada com a Constituição dos diplomas que regem o PIS/Cofins em geral e o regime especial dos hidrocarbonetos em particular.

[1] Correntes são os fluidos derivados do refino do petróleo que servem à fabricação de um produto.

[2] “Art. 3º. Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:

I – bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos:

(…)

b) nos §§ 1º e 1º-A do art. 2º desta Lei;”

“Art. 2º, § 1º. Excetua-se do disposto no caput deste artigo a receita bruta auferida pelos produtores ou importadores, que devem aplicar as alíquotas previstas:

I – nos incisos I a III do art. 4º da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, e alterações posteriores, no caso de venda de gasolinas e suas correntes, exceto gasolina de aviação, óleo diesel e suas correntes e gás liquefeito de petróleo – GLP derivado de petróleo e de gás natural;

(…)

VI – no art. 2º da Lei nº 10.560, de 13 de novembro de 2002, e alterações posteriores, no caso de venda de querosene de aviação;

(…)

X – no art. 23 da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, no caso de venda de gasolinas e suas correntes, exceto gasolina de aviação, óleo diesel e suas correntes, querosene de aviação, gás liquefeito de petróleo – GLP derivado de petróleo e de gás natural.”

[3] Valores fixados pelo Decreto nº 5.059/2004, conforme a autorização do art. 23, § 5º, da Lei 10.865/2004.

[4] Um exemplo é o General Treaty on Tariffs and Trade – GATT/1994: “III.2. Os produtos do território de qualquer Parte Contratante, importados por outra Parte Contratante, não estão sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais. (…)”

[5] As informações foram extraídas do Anuário Estatístico da ANP, disponível em:

http://www.anp.gov.br/wwwanp/ images/publicacoes/Anuario_ Estatistico_ANP_2016.pdf.

[6] Sobre o tema: LUÍS EDUARDO SCHOUERI. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 333-334.

Publicado na Revista Consultor Jurídico, 1 de fevereiro de 2017, 8h10

Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

zehuritovar porzehuritovar

Contencioso administrativo exige reforma nos três níveis da federação

Os tribunais administrativos tributários estão em crise. No âmbito federal, o Carf — apesar de sua decantada qualidade técnica — tem funcionado aos soluços, sacudido ora por suspeitas de corrupção, ora por greves, ora por liminares que impedem o julgamento de casos ou alteram o seu resultado. No plano estadual, reina a entropia, cada estrutura tendo regras próprias de composição e funcionamento. O mesmo vale para os municípios; ou melhor, para a minoria deles que mantém algum órgão do gênero.

O remédio é aperfeiçoar, e não extinguir, pois esses tribunais são essenciais para a garantia de uma tributação justa: é a revisão que fazem do lançamento — pois aqui não cabe esperar o consentimento do devedor, como ocorre nos títulos executivos privados — que legitima o acesso direto do credor à execução, com salto sobre o processo de conhecimento. Interpretando o artigo 5º, inciso LV, da Constituição, o STF já afirmou que o contencioso administrativo em dois graus é direito fundamental do contribuinte (RE 389.383/SP).

O mesmo diploma poderia submeter a câmaras especializadas dos tribunais administrativos estaduais os processos dos municípios sem condições ou interesse para, atendendo àqueles requisitos mínimos, criar a sua própria estrutura de julgamento.

A sistemática, semelhante à adotada nos tribunais de Contas (CF, artigo 31, parágrafos 1º e 4º), não atentaria contra o federalismo. Basta notar que teria aplicação subsidiária, visando efetivar, diante da omissão do poder público, o direito fundamental de acesso à jurisdição administrativa. Repetindo: o município poderia facilmente subtrair-se à instância revisora estadual, desde que instituísse a sua, na forma da lei.

Quanto à composição dos tribunais, temos que a forma paritária — com metade dos integrantes indicados pelo Fisco e metade pelos contribuintes — não é um dogma, podendo-se perfeitamente admitir julgadores profissionais recrutados em concurso específico, à condição de que organizados em carreira apartada da fiscalização e dotados de garantias de imparcialidade similares às outorgadas ao Judiciário.

A manter-se o modelo paritário, que é a nossa tradição, três pontos merecerão cuidado. Primeiro, o resguardo da efetiva paridade, vedando-se o funcionamento de câmaras desequilibradas. Tal anomalia atualmente se verifica no Carf, pela dificuldade de recrutarem-se conselheiros representantes dos contribuintes (que ganham muito menos do que os do Fisco!), e tem ensejado liminares suspendendo o julgamento de feitos naquele órgão.

Segundo, a prevenção de conflitos de interesses no espírito dos julgadores. Para os representantes do Fisco, isso se faz impedindo-se que tenham participação nos valores sobre os quais decidem. A vedação existe para o Judiciário (CF, artigo 95, parágrafo único, II) e deve, pelas mesmíssimas razões — moralidade e imparcialidade —, ser estendida aos juízes administrativos.

A bem dizer, a inconstitucionalidade da MP 765/2016, que destina aos fiscais federais 100% das multas arrecadadas, não seria sanada com a mera supressão do benefício para os auditores cedidos ao Carf. Ainda que restrito aos auditores dedicados à fiscalização, o bônus continuaria a representar apropriação de receita pública para fins privados (ADI 1.145), vinculação de receita à remuneração de servidores (CF, artigo 37, inciso XIII) e ofensa à impessoalidade da administração (STF, Representação 904), entre outros vícios que apontamos em parecer ora pendente de votação no Conselho Federal da OAB.

Já para os representantes dos contribuintes, evitam-se os conflitos de interesses proibindo-se que atuem como advogados. A incompatibilidade, trazida pelo artigo 28, inciso II, do Estatuto da OAB, passou a ser aplicada de forma literal pelo Conselho Federal da OAB apenas em 2015, e mesmo assim só para o Carf — mantendo-se a interpretação anterior (mero impedimento para advogar contra o ente a que servem) para os membros dos demais tribunais administrativos.

O tema suscita paixões, mas aplaudimos a nova orientação e predicamos a sua extensão aos estados e municípios, sem nenhum demérito aos advogados que, seguindo a orientação do Conselho Federal, atuaram ou — nos tribunais locais — continuam a atuar como julgadores. A crítica é à regra (ou a uma certa interpretação dela), e não às pessoas que a observam. E nada tem que ver com suspeitas de corrupção, para as quais o tratamento é policial, mas, sim, com o ganho de eficiência decorrente da dedicação exclusiva de todos os julgadores ao tribunal, e principalmente com o imperativo de transparência, hoje muito mais rigoroso do que outrora.

O terceiro tema refere-se ao tratamento do empate. Pensamos que a solução atual é inadequada, seja por vulgarizar um mecanismo — o voto de minerva do presidente — concebido para resolver a igualdade acidental em cortes com número ímpar de assentos, seja por estimular o alinhamento automático dos conselheiros do Fisco nos casos de vulto. Inverter o critério, como têm feito recentes liminares que definem o empate como vitória do contribuinte, mantém o problema, apenas transferindo o benefício indevido para o outro lado. E acabará por legitimar a Fazenda a contestar em juízo as decisões que lhe forem contrárias, em lance de esquizofrenia institucional: o poder público propondo ação contra um ato seu.

Melhor será eliminar o voto dobrado para qualquer das partes, conservando-se, em caso de empate, a suspensão da exigibilidade do tributo até a sentença de 1º grau, desde que o contribuinte ajuíze ação anulatória em até 60 dias do fim do processo administrativo. O juiz será o desempatador, e o débito deverá ser garantido após a sentença, se esta for de improcedência. Trata-se, é claro, de alteração a ser feita pelo legislador, e não por decisões judiciais ativistas.

Duas observações finais: qualquer modelo, paritário ou não, repele o recurso hierárquico, mantido em algumas legislações estaduais, como a do Rio de Janeiro. Ofende o contraditório e o due process atribuir-se a apenas uma das partes, encerrado o debate no âmbito de órgão técnico, a faculdade de suscitar a decisão política do secretário da Fazenda, nada menos do que o chefe da arrecadação.

E convém, face à elevada sofisticação das questões processuais e de mérito discutidas nos tribunais administrativos, exigir que o particular seja sempre representado por advogado (alteração do artigo 1º do Estatuto da OAB), para maior benefício do próprio contribuinte e para — com a garantia da qualidade técnica dos debates — tirar-se o máximo proveito dessa instância, desafogando-se na medida do possível o Poder Judiciário.

Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Instagram
× Como posso te ajudar?